Não sei muito bem como, dei por mim a reflectir em como eu era uma criança estupidamente adulta. Às vezes mais do que hoje em dia. Ser filha de um pai deficiente e exigente é o mesmo que seres entregue aos lobos. Ou ages, ou ages - não há um plano B.
Ele levava-me aos bancos, a compartições das finanças, etc. etc., que muitas vezes eram em edifícios antigos sem acesso para cadeiras de rodas. E lá ia eu... "boa tarde, o meu pai é o X (como se eles não soubessem já), ele está lá fora e não pode entrar. Ele precisa de fazer isto e isto, depois posso levar lá fora para ele assinar?". Não havia tempo de antena para a vergonha ou para a timidez. É como disse, ou ages, ou ages.
Foi assim que, com 4 anos, eu passava cheques. Algures na primária comecei a preencher documentos burocráticos relacionados com a actividade profissional do meu pai. Na altura, não vou dizer que gostava de o fazer... Claramente não gostava da obrigação que sentia, consigo ver isso agora. Não gostava de não ter outra opção para além de enfrentar pessoas desconhecidas - algo que nunca gostei e ainda hoje não gosto. Claro que o faço, só não gosto. A minha mãe chegou a atirar-me à cara que com o meu pai eu não tinha problemas em fazer X ou Y. Olha, boa, não tinha outra hipótese.
Felizmente ou infelizmente, a capacidade para dizer "não quero", "não consigo", "não posso" chegou tarde. Sei que ainda lhe dei umas quantas frustrações com o "não consigo", todas relacionadas com a minha fraca capacidade para trabalhos manuais. Não é que eu não tentasse, mas lembro-me de uma vez em que estávamos só os dois - tinha eu 12 anos, a minha avó tinha morrido há pouco tempo e ele queria à força que eu acendesse a lareira. Eu tentei, mas cheguei a um ponto em que claramente vi que não estava a conseguir e desisti de tentar. Ele exaltou-se de uma forma louca (agora, de fora e 11 anos depois, consigo perceber o porquê, o sentimento de incapacidade total), mas eu mantive a minha posição. Claro que parece estúpido, de criança mimada que não quer fazer mais... Mas eu também tinha direito a dizer que não, a definir limites.
Não me estou a queixar da minha infância. Não foi a melhor, mas também não há-de ter sido a pior neste mundo. Tinha comida, várias casas (pois é, vantagens de ser filho de pais separados) e pessoas que me amavam. Também não me acho mais do que ninguém por ter passado por isto... Até acho que as crianças são demasiado protegidas do mundo real. Mas não deixa de ser irónico que, com aquela idade, fosse muito mais corajosa e lutadora do que me julgo agora. Possivelmente, tudo para o deixar orgulhoso...